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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O telefonema

O telefonema

Depois de alguns segundos tentando relembrar o código de área, Atílio digita mais oito números dos quais esquecera minutos depois, aguarda outra dúzia de segundos, agora munido de certa apreensão, e já com o telefone pressionado à orelha esquerda ouve uma voz suave do outro lado da linha:
- Alô! Quem fala?
- Sou eu, não se lembra mais de mim! – responde Atílio caminhando de canto a canto da sala de sua querida tia.
- Nem imagino! Como posso saber?
Sem contar com a sinceridade da resposta ele enxuga as mãos na calça jeans batida, deixando transparecer em sua voz a satisfação incontida.
- Vou te dar uma chance!
- E eu vou desligar! – dispara Amélia, que há anos rondava os sonhos de Atílio. Com medo de perder a única chance em cinco anos de espera, o atabalhoado rapaz de mento proeminente e nariz pontudo, elucida o mistério com rapidez.
- Sou eu, Atílio! Não se lembra mesmo de mim?
 - Atílio! – fala ela pausadamente.  – Não posso acreditar que é você! – continua, demonstrando demasiada surpresa.
- Estava por perto e resolvi ligar – mente ele, ocultando o fato de Amélia ser presença garantida em seus sonhos.
Antes que ele pudesse prosseguir ela irrompe em um interrogatório matador.
- Casado? Filhos? Homem ou mulher? Continua esquisito? Cabeludo? Onde está morando... Conte-me tudo! – parando somente para recobrar o ar que naquele momento fugira de seus pulmões.
- Bem, eu... – Atílio emudece por um instante para pensar. Atordoado com tantas perguntas ele se lembrou dos bons tempos de faculdade em que ouvia Amélia falar com entusiasmo e graciosidade, exatamente como acabara de fazer.
- Pensei em te ver – diz timidamente, sem responder a nenhuma das perguntas que sua interlocutora havia lhe feito.
- Me ver? Para quê?
- Preciso de um motivo? – replica rápido e astuciosamente, mesmo sem querer.
- Foi o beijo, não foi? – indaga. – Já faz cinco anos Atílio. Melhor esquecer – conclui a moça bonita com olhos de esmeralda.
Sem repetir o raro momento de destreza o jovem desengonçado agora sua em bicas, pronto para desligar o telefone. Atílio beijara Amélia anos atrás, em noite clara que jamais conseguiu esquecer, porém, é certo que este não é o motivo do telefonema, mesmo que agora ele próprio começasse a questionar o real motivo da ligação.
- A lembrança do beijo não nego, mas apenas pensei em você – explica, enquanto tropeçava no tapete da sala e caia sobre a estante, derrubando objetos de souvenir e porta- retratos de família.
Aproveitando um momento ínfimo de silêncio, prosseguiu.
- Acho melhor desligar. De qualquer forma foi bom falar com você – finda em tom derrotado.
- Mas como assim? Ainda nem conversamos. Ao menos sei que continua esquisito! – ela o chacoteia.
- Quer me ver ou não? – impacienta-se Atílio.
Na mesma hora Amélia desliga o telefone impetuosamente, deixando apenas o som intermitente da linha sem sinal. Irritado consigo mesmo, Atílio reconstrói em sua mente a imagem do corpo curvilíneo e perfeito de Amélia, imaginando-se fitar aqueles grandes olhos verdes, ao tempo que ameiga seus longos cabelos negros.
Respira fundo, esquece novamente o código de área, lembrando-o segundos depois, arranca um pequeno pedaço de papel mal cortado do bolso da calça surrada, lê com dificuldade os oito números nele contidos e, por fim, volta a colar a orelha esquerda ao telefone. Após inacabáveis toques renitentes, eis que alguém atende:
- Alô!
- Me desculpe, podemos começar novamente? – implora, sentindo-se um idiota.
- Eu quero que você morra, Dalton – vocifera Anete, irmã de Amélia, nem mais feliz e nem menos bela. – Me deixe em paz e volte para as meretrizes de que tanto gosta! – esbraveja ela.
Sem jeito, Atílio pede gentilmente para falar com Amélia, tendo a certeza de que Anete o confundira com alguém. Inexoravelmente, sem se desculpar, a irmã exaltada abandona o telefone, que permanece mudo por quase um minuto, uma eternidade!
- Me desculpe, Atílio – ecoa de repente. – Só me causa estranheza, sei que você me entende – responde Amélia com brandura apaixonante.
Atílio consente.
- Posso lhe ver? – ele pergunta em tom conclusivo.
Amélia respira pesadamente duas ou três vezes, sente uma estranha e ao mesmo tempo reconfortante sensação lhe tomar o corpo. Um sorriso discreto lhe foge ao canto da boca e ela, sem entender muito toda aquela situação, percebe estar feliz.
- Tudo bem, Atílio, podemos nos ver.
Ainda confuso mas extremamente feliz, Atílio profere algumas palavras numa gagueira patética, porém sincera. Desliga o telefone e contente encaminha-se para a porta da sala. Atrapalhado, despede-se de sua querida tia, tropeçando novamente no tapete agora amarrotado.  
Outubro de 2010

Um comentário:

  1. Não foi o beijo... Era apenas vontade de rever e ver que estava tudo bem.

    Gostei.

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