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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Laranjas e araticuns

Laranjas e Araticuns

Um conto sobre a simplicidade e a amizade verdadeira.
Osório percebe que aqueles meninos indesejáveis adentraram em suas terras novamente. O que buscam ele já sabe: um banho refrescante e imundo no velho lago Vicentão, araticuns despedaçadas ao chão, um pouco de bagunça inconsciente e descompromissada e algumas das enormes laranjas que seu fornido pomar ostenta!
São vários e sempre os mesmos. Seu Osório “velório” – assim como é chamado pelos garotos por sua carranca fúnebre – irrita-se sempre quando os vê, não por danos que os pobres venham a causar, mas por ser um velho sozinho e rabugento!
- Hoje ninguém vai para rio nenhum! - esbraveja o velho.
Rindo, os garotos correm a mil e atiram-se afoitos nas águas lamacentas do Vicentão. A tarde passa lenta, o dia parece não ter fim! Os meninos exibem seus saltos acrobáticos e suas manchas de micose, presente do velho lago de águas paradas, reduto de bois e outros animais mortos! Isso não os incomoda e a cada pulo um sorriso estampado no rosto.
A noite cai e o vento frio castiga. As terras do sul comumente são mais geladas. As cuecas molhadas tornam-se pedras de gelo juntas ao corpo. Ninguém reclama. As piadas, de tão sem-graça, os fazem rir e esquecer o frio. As mãos duras não impedem que os dedos trabalhem rápido nas lisas cascas verdes do araticum. A fome também bate forte, mas as doces sementes da pequena fruta gosmenta ajudam a amenizá-la.
- Nossa cara, vô comê muito quando eu chegá em casa - diz um dos meninos com os lábios rachados de frio.
- Nem com muita fome - responde outro deles que caminhava à frente.
- Deve ser por causa das dezessete laranjas que cê comeu no Osório! - completa um terceiro que vinha ouvindo a conversa.
Risos quebram o silêncio da noite e a solidão das estradas de terra que margeiam as plantações de soja. Depois de alguns quartos de hora de caminhada e algumas piadinhas infelizes a mais, as primeiras luzes da cidade começam a fazer parte do horizonte escuro e estrelado. Muito perto da rodovia que corta o bairro de casas populares, o grupo vai se dissipando, um a um, entrando em casas que parecem iguais. O bairro é pobre, mas isso também não os incomoda. Lá tem de tudo o que precisam: de rio a riacho, de campinho a milharal; mata de bambu para fazer vara de pescar e vídeo game Atari na casa do Dú.
Por fim, já dentro da cidade, a casta de moleques se transforma numa dupla cansada e silenciosa. Passos pesados aproximam-se de um portão cinza de metal, cuja casa mescla calçadas de cacos de ladrilho e pedregulhos pintados com o amarelo das flores de ipê. A dupla, por sua vez, não se despede e nem diz boa noite. São irmãos! Não se dão muito bem, é verdade, mas mesmo assim não se desgrudam.
- Lava esse pé sujo para entrá em casa, seu porco! - impõe taxativo o irmão mais velho.
Desleixado, o irmão mais novo ri um pouco e demora a responder. Calmamente lava seus surrados pés e, antes que o irmão adentre a cozinha, dispara sarcasticamente uma resposta, digna de cinismo profissional:
- Também gosto de você, trouxa!
Já limpos, enquanto comem o enorme pão caseiro feito pela prendada mãe, trocam ofensas inofensivas e bobas. Após a esperada refeição, um pouco de TV e cama.
No dia seguinte, rumo à escola, o papo se restringe apenas às peripécias do dia anterior e aos planos para depois da aula. Nada de novo, nada em especial. Apenas mais um dia de laranjas e araticuns.
20 de dezembro de 2006

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