Por Tarso Zagato
Desesperado, Jerry
entra a solavancos em uma tapera lúgubre e abandonada, esquecida em meio à
floresta Great Valley. Em sua face amedrontada o suor se mistura às lágrimas,
enquanto a confusão mental e a iminência da morte arrancam-lhe a racionalidade.
– Que merda é esta! Que
merda é esta! – repete entre suspiros e soluços, imaginando estar sendo
espreitado metro a metro pelo seu agressor oculto.
Jerry recosta em uma
porta feita de palha e bambu seco, deixando-se deslizar pela superfície suja e
embolorada, reclinando-se ao chão e fechando-se entre os joelhos doloridos do
exaustivo subterfúgio. Um choro contido permanece quase inaudível e realça a
agonia do pobre diabo. Ele respira pouco, cadenciadamente, repreende com força a
ação natural do próprio diafragma, temendo ser ouvido e delatado. A respiração
não obedece, segue descompassada e denuncia quilômetros de fuga alucinante em
meio à floresta úmida e funesta. A mente assustada trabalha inquieta. Um
simples ruído, o estalar da madeira retraída pelo frio, o rastejar de insetos
repugnantes pelo chão infestado de fezes e musgo, o som do assoalho pressionado
pelos pés cansados e feridos, o silêncio que amofina. O mínimo barulho
sugestionado pelo medo soa como mil trombetas ao pé do ouvido.
– Isto não pode estar
acontecendo. Não pode estar acontecendo – repete palavras novamente, inundado
em terror e descrença.
Há muito o sol
abandonara o dia e, se ainda pensasse com clareza, acreditaria estar próximo da
meia-noite. Naquele instante foi visitado pela imagem iluminada da pequena
Sarah, seu incalculável tesouro que se esquecera de beijar na manhã do seu
último dia, seu precioso diamante de traços angelicais, o singular motivo de
manter-se vivo. Odiou-se por não dar o devido valor às pequenas coisas que
realmente importam. O chocolate quente ao pé da lareira, os beijos amorosos de sua
linda Jane, o abraço reconfortante e apertado de sua razão de viver, os inegáveis
pedidos para mais uma cantiga de ninar, o amor incondicional daquelas que o
viam como o mais poderoso dos heróis, a alegria pura e fantástica do lar que
tanto se esforçou para manter-se longe.
Arrancado de seu idílio
mental pelo devastador e agonizante desespero, apreensão. Jerry ouve passos
pesados, imediatamente delatados pelo ranger de galhos podres e sem vida. Ele
sente um frio na espinha consumi-lo por inteiro, é uma lâmina que parece
percorrer cada centímetro do seu corpo, extremidade a extremidade. E os passos
continuam lá fora, cada vez mais próximos da alcova pútrida, ainda mais
assustadores. O barulho cessa, mas o cheiro da morte exala forte. São elementos
que precedem o fim e mantém o pobre espreitado imóvel, estático, incapaz,
impossibilitado de agir.
A miscelânea de sons
reais e imaginários dá lugar a um único: uma respiração pesada, tensa e
sistematicamente pausada. Jerry sugestiona outra vez e acredita estar sentindo
o bafo quente e fétido do maníaco transpassando a palhoça imunda e envolvendo
todo o ar.
– Ele está aqui! O
maldito está aqui! Por que eu? – pensa ele, aturdido pela possibilidade de
morrer.
Um novo silêncio
inquietante faz Jerry regredir no tempo em busca de explicações sensatas que lhe
pudessem acalmar a alma e devolver-lhe a racionalidade. Esforçou-se como nunca
antes fizera e, mesmo assim, retornou de sua regressão mental sem nada para lhe
abrandar os nervos e, tampouco, sem respostas aceitáveis que explicassem aquela
situação.
Àquela altura, a
quietude da cabana rivalizava com os longínquos e tímidos uivos provocados pelo
vento estéril. Era como se a maldade pedisse passagem, em um prenúncio maléfico
de dor e terror. Em frente aos olhos graves e encharcados de Jerry, o cenário
se completava com o vagaroso movimento de lesmas corpulentas e repugnantes em
uma das paredes da choupana, na qual havia uma janela encerrada por pregos e
madeira podre e úmida, desenhada por rastros de um muco viscoso e pútrido.
E assim seguiram-se
horas e horas de aflição. Horas que não traziam a clareza do dia, horas que não
levavam para longe o pesadelo, horas que não dissipavam o medo. O cansaço
físico e mental estampa-se no corpo sujo e estilhaçado pela tensão e nos
vidrados olhos vermelhos acentuados por pupilas terrivelmente dilatadas.
Neste momento, com a
surrealidade batendo literalmente à sua porta, Jerry se enche de derrota e, por
alguns segundos, desiste, deixando-se infectar ainda mais pelo ambiente
profano, indo ao chão como um boxeador nocauteado. Sabe que ainda está
acordado, pois volta a divagar sobre aquele pedaço do inferno em que fora
colocado, o cheiro de merda e podridão impregnado em suas narinas, a maldita
besta que parecia brincar com ele antes de mortificar-lhe a alma e submetê-lo às
mais lancinantes torturas e aflições. Sentia que não havia mais nada a fazer. Repousou
a cabeça na superfície maculada e deixou que o ar, enfim, escapasse livre e
descompassadamente de seus pulmões, trazendo-lhe certo alívio, curto e
passageiro.
Absorto no breve
momento de falsa redenção, Jerry é recolocado em seu inferno pessoal ao retomar
aos ouvidos a respiração sádica que ouvira horas antes. Apesar de aterrorizado,
em nenhum momento pensou em abandonar seu frágil refúgio no meio do nada. Tinha
certeza de que a morte o esperava do lado de fora, como nos filmes de terror em
que, uma a uma, as personagens iam sendo estripadas das maneiras mais cruéis e inventivas
possíveis.
Vindo de pulmões
enormes, presumivelmente, o som pesado ganha ainda mais força. E se aproxima.
Somam-se a ele passos também pesados. E se aproxima. Coloca-se à frente da
porta em que Jerry está recostado, derrotado. E se aproxima. Abaixa-se
lentamente, como se pudesse observar o maldito diabo através da palhoça. E se
aproxima. Agora, separados por poucos centímetros de matéria podre e úmida, o
nefasto já consegue sentir a pulsação frenética de Jerry, que é acometido por
dores lancinantes no peito. Prestes a apagar, mas ainda consciente, sente
um estampido nos ouvidos que cessa todos os sons mundo, exceto a respiração que
precede a morte. Uma, duas, três vezes. E não há nada mais, apenas uma frase
que o faz acordar.
- Você não merece viver.
Como a um Renton de Welsh,
Jerry renasce sobre uma maca fria e dura de hospital, cercado de paredes frias
e brancas, simetricamente adornadas por faixas beges que lhes conferem ainda
mais esterilidade e rijeza. E não é um dia perfeito como entoava a canção de
Lou Reed no filme de Boyle! Está mais para uma cena triste de um filme
dramático. Jane, com Sarah nos braços, acompanha tudo por uma janela de vidro,
do lado de fora, ambas chorosas e abatidas com mais uma recaída do marido-pai.
Jerry assiste a tudo, impassível. Evidencia os inúmeros hematomas nos braços e
dedos, consequência dos sucessivos abusos e violações contra o próprio corpo.
A equipe médica
esgueirava-se pela sala em socorro do corpo drogado que padecia sobre a maca.
Entre os equipamentos que o mantinha vivo, um reluzia sua face, pálida, cadavérica,
sem vida. Jerry recobrou a razão sobre tudo o que novamente causara. Naquele
momento, desejou estar morto.