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quinta-feira, 10 de março de 2011

Conto o que se conta


Invisível

Como se fosse invisível.
Até parece brincadeira... Todos os dias, como se fosse combinado, ele aparece por volta das seis e meia, caminhando em passos largos e aparentemente cansados, eis que surge o estranho da casa 166. Os cabelos compridos e úmidos, quase sempre enrolados, escondem a face sombria e criam certo ar misterioso. As vestimentas inalteravelmente escuras completam o contexto fúnebre. No abrigo de concreto em que espera o ônibus ele se senta, apoia imediatamente os cotovelos sobre os joelhos, simetricamente perfilados, e, por fim, mantém-se cabisbaixo a todo o momento, como quem se esconde do mundo ou qualquer coisa que o valha. Numa pasta surrada guarda centenas de folhas conglomeradas de anotações – eu daria tudo para lê-las! – e alguns livros sujos.
Perdura-se imóvel até a chegada de seu transporte, inerte. Ele parece estar excluso do universo que o cerca, exala frieza! Contudo, são apenas conclusões precipitadas que não trazem consigo nenhum tipo de autenticidade – realmente eu falo demais! Enfim, a carroça de latão desponta na avenida. Calmamente, ele recolhe seus materiais que haviam sido postos no chão, levanta-se ainda com os cabelos lhe cortando a luz, espera pacientemente o embarque de todas as outras pessoas e, só assim, adentra ao veículo com exacerbada discrição. Percorre o corredor tão centrado que nem chega a ser notado pelos demais, situação esta que parece ser cuidadosamente premeditada. Ele se acomoda no último assento, antes mesmo que o ônibus me fuja das vistas.
Há dias que pretendo me aproximar, mas desde que parti estou confuso. Embora ele não possa me ver, sinto que ele percebe minha presença. No entanto, não sei qual será sua reação se acaso eu tentar qualquer contato. Seu estilo me força a acreditar que se trata de alguém com personalidade conturbada, com uma dose cavalar de depressão. Contudo, sei que, em mais ou menos tempo, nosso encontro será inevitável. Por isso, receio não ter coragem para agir e sutileza para não assustá-lo. Tenho esperança que ele possa me ajudar a entender o que esta acontecendo.
Por fim, percebo em seus olhos uma tristeza profunda, tão análoga a minha. Seu semblante obscuro retrata uma nostalgia peculiar que torna o ato de viver uma eterna punição. Às vezes, penso em como seria tê-lo conhecido antes de minha morte, se é que teria coragem de me aproximar.
Hoje, em minha mente guardo apenas duas visões: meu corpo banhado a sangue em frente àquele ônibus e os olhos trêmulos do rapaz estranho me fitando no chão.

                                                                                 Março de 2005

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