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segunda-feira, 13 de junho de 2011

Rubem Braga: uma releitura

O conto a seguir foi inspirado na obra "Um braço de mulher", de Rubem Braga. De maneira alguma essa releitura almeja sobrepor-se ao original. Muito pelo contrário. Nela se inspira e presta a justa homenagem a quem realmente fez história em nossa literatura.   

Homenagem a Rubem Braga (1913-1990)
Lamentos de um cafajeste

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava pequenas coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Meu humor azedo, obra dos excessos da noite anterior, emanava da minha carranca amassada e pálida, assustando a aeromoça que acabara de me servir o café. Meus olhos lutavam bravamente para se manterem abertos e nem se deram conta de que a cidade maravilhosa ficara para trás. Dormir, impossível. Afinal, eram poltronas de avião! 

Os avisos proferidos em um inglês sofrível atenuavam minha cólera ao ponto de todos perceberem minha inquietação. Tentei controlar o arrependimento de mais uma vez ter me jogado à esbórnia carioca e voltei a me concentrar em meus pensamentos. De fato, havia muito que pensar. Viagem, trabalho, negócios, traição! Eventualmente eu me perdia nos boêmios bares de Copacabana, quase sempre após entediantes dias abarrotados de reuniões inúteis. Lembro-me de uma época em que ainda era moço reto, em tempos em que Aurora ainda era a única. Busquei no cerne de minhas lembranças o exato momento em que me desviara do caminho digno da monogamia! Pensei, pensei, pensei e desisti, assim que uma maldita turbulência atirou em meu colo o café morno que repousava à minha frente. 


O jornal, agora manchado de um marrom vivo, ajudava a compor uma cena digna de A Divina Comédia: notícias espalhadas pelo chão, uma calça de branco celestial adornada por manchas escuras, a mesma aeromoça assustada tentando sem êxito ser prestativa e o olhar matador da senhora gorda que fingia não sentir suas voluptuosas coxas roliças roçarem às minhas. Por um instante parei no tempo e recobrei Aurora em minha mente. Pele cândida, cabelos negros bem tratados que se ondulavam até a silhueta levemente deformada pelos anos, olhos sinceros cor-de-mel, lábios pouco generosos, mas cuidadosamente esculpidos, seios fartos que se destacavam na baixa estatura e um amor incondicional por este que vivia a andar com as putas. 


A culpa rapidamente me arrancou a doce lembrança de Aurora e atirou-me novamente àquela realidade caótica. Respirei, afastei de mim as mãos afobadas da aeromoça estabanada e retribui à gorda o olhar cretino que há pouco recebera. Se não fosse ateu acharia que aquela situação era castigo de Deus. 


Enfim, acalmei-me. Sentei-me novamente e percebi que não estava mais comprimido naquela cadeira ridícula. A senhora fornida havia trocado de lugar e me deixara sozinho com a minha acidez. Olhei pela pequena janela à minha esquerda e finalmente percebi estar no céu. A noite anterior sumiu de minha mente e uma vontade súbita de estar em casa me acometeu. Estranho, mas compreensível, arrependimento de quem sabia que não valia muito. 


Àquela altura, com o perdão do trocadilho, minhas pernas molhadas de café gelado faziam com que os trinta minutos daquela ponte área se tornassem intermináveis. Que culpa desgraçada! Que saudade de Aurora! Que falta da garoa! Fechei os olhos para sentir o avião perder altitude lentamente e me alegrei em ver os primeiros respingos escorrerem pelas asas de metal. No chão, finalmente! 


Encaminhei-me à saída ignorando estar na presença de quase duzentos desconhecidos e logo percebi ter suprimido minha irritação por um vazio sem fim. À porta, educadamente a aeromoça me desejou um bom dia, mas não consegui proferir palavra. Sem me preocupar com os olhares que fitavam minhas calças decoradas, atravessei o malcuidado saguão. Como se combinado um táxi me esperava. Entrei, sentei-me, e antes de indicar o destino ao motorista grisalho senti-me sujo em saber que logo faria tudo outra vez.                  

04 de maio de 2011

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