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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Entrevista: Samantha Lodi, uma historiadora em meio à história

A historiadora Samantha Lodi (Divulgação)
Foram doze minutos de silêncio prestados aos doze mortos. O local escolhido foi a mais famosa catedral parisiense e, como se até o céu chorasse, a chuva iniciou segundos antes das tradicionais doze badaladas do meio dia. E se intensificou enquanto pessoas permaneciam paradas, em seus silêncios tristes. Para alguns, o silêncio era quebrado pelos sinos de Notre-Dame, para mim, o silêncio foi reforçado pelo ecoar dos centenários sinos que já presenciaram tanta intolerância de nosso mundo”.

As palavras de pesar incomensurável foram o recurso que a historiadora guaçuana Samantha Lodi encontrou para expressar tamanha tristeza compartilhada por milhões de franceses. O terror promovido pelo fundamentalismo islâmico chegou ao berço dos direitos universais em forma de morte e intolerância. Uma ação minuciosamente planejada, dois ataques coordenados, três terroristas mortos e 17 inocentes executados. 

No ataque à revista Charlie Hebdo – onde 12 pessoas foram mortas, entre elas quatro dos mais renomados cartunistas do mundo – morreu também a liberdade de expressão, suscitada cinco dias depois pelo grito de paz entoado por centenas de milhares que tomaram a Praça da República em protesto contra a intolerância e a chamada Guerra Santa. Como por obra do destino, a historiadora se viu em meio à escrita de mais uma página da História e também saiu às ruas parisienses para engrossar o coro por liberdade, igualdade e fraternidade, ideais da incandescente Revolução Francesa de 1789 que culminou com a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. 
  
Na França desde julho passado, onde desenvolve pesquisas na Université de Rouen, Samantha Lodi explanou sobre os acontecimentos dos últimos dias e, como boa historiadora, prestou sua colaboração para documentar aquilo que certamente será descrito, em breve, nos livros de História. 
 
Letra e Cultura: Olá, Samantha, como vai? Gostaria que você iniciasse essa entrevista comentando sobre o massacre ocorrido no jornal satírico Charlie Hebdo, o qual ainda repercute em todo mundo. Neste momento, que tipo de sentimento você percebe entre os franceses?
Samantha Lodi: Olá! Mesmo em um momento atípico, estou bem. Nos primeiros dias achei que a tristeza era o sentimento mais evidente nos franceses, embora o sentimento ainda permaneça. Agora, penso que a veias revolucionárias históricas do povo emergem com mais clareza. Participando da marcha no último domingo, a história da França revolucionária ecoava em cada francês que encontrei pela rua, independente de qualquer religião ou ateu, em todas as idades. Os pais levavam seus filhos e incentivavam a participar da marcha, vários senhores e senhoras em seus grupos com suas manifestações também estavam por lá. O que percebi foi uma força coletiva em nome da liberdade tão cara a essa nação.
                                                                                                    
Letra e Cultura: Em seu artigo “Je suis Charlie. Nous sommes tous Charlie.” (Eu sou Charlie. Todos somos Charlie), publicado no Brasil dois dias após o assassinato de 12 pessoas ligadas à revista francesa, entre eles quatro renomados cartunistas, você fala sobre “o maior ataque terrorista que o país já sofreu”. Esse incidente, guardadas as suas devidas proporções, pode ser considerado o “11 de setembro” francês?  
Samantha Lodi: Coloquei isso mesmo no artigo da Gazeta Vargengrandense porque foi exatamente o que se viu. Nunca o país tinha passado por um ataque desse tipo e vale lembrar que desde que cheguei aqui, em julho de 2014, uma das melhores sensações que sempre tive foi a da segurança pelas ruas a qualquer horário. Alguns telejornais franceses fizeram essa comparação ao “11 de setembro”, claro que guardando as devidas proporções. É certo que foi o maior número de mortos que tiveram por um ataque terrorista e imagino que isso terá consequências. E já que falamos do slogan usado por essa ocasião, percebi que muitos brasileiros não compreenderam seu real significado.

Mais de 1,5 milhão de pessoas tomaram as ruas de Paris em protesto
contra a intolerância (Foto: Gina Sanches)
Letra e Cultura: Há quase uma semana, a imprensa mundial vem produzindo quantidades estratosféricas de conteúdo jornalístico sobre o ataque à Charlie Hebdo. Na grande mídia brasileira, a execução de 17 pessoas por terroristas ligados a grupos islâmicos parece ser secundária à questão da liberdade de expressão frente ao fanatismo religioso. O que você pensa sobre isso?    
Samantha Lodi: Esse é o ponto principal da falta de compreensão de alguns. Vi muita discussão nas redes sociais reforçando “Je ne suis pas Charlie” (Eu não sou Charlie) e fazendo análise do conteúdo do jornal e cheios de juízos de valores. Como você já colocou é um jornal satírico, faz parte da sátira “ridicularizar”, e é isso que a Charlie Hebdo tem como linha editorial, vários grupos e acontecimentos são satirizados por ela. Alguns franceses me disseram que é difícil entender isso de outro ponto de vista cultural. A mídia brasileira coloca como secundária a questão primordial dos franceses frente aos ataques, aqui a palavra de ordem é a liberdade de expressão, quando dizem que “são Charlie”, dizem “queremos manter a nossa liberdade de expressão”. Eu não sou muito fã de piadas, mas considero a liberdade de expressão o bem mais precioso da democracia, se tivermos pessoas controladas em suas palavras, textos ou desenhos, certamente estamos seguindo um caminho perigoso. Agora, a grande mídia brasileira continua cumprindo seu papel de anos ao distorcer os fatos.

"Eu sou liberdade", diz cartaz de manifestante
(Foto: Samantha Lodi)
Letra e Cultura: Falando especificamente do Brasil, você acredita que a liberdade de expressão é totalmente compreendida e devidamente valorizada em nossos estratos sociais?
Samantha Lodi: Não. Acredito que muitos brasileiros ainda não concebem o valor da liberdade de expressão, infelizmente. E isso muitas vezes é oficial no Brasil com processos e etc. Um exemplo ilustrativo são livros biográficos, onde a liberdade de expressão é levada a sério as biografias são publicadas de qualquer forma, porém uma nota explicativa sai na capa do livro: Biografia não autorizada. No Brasil tivemos, recentemente, uma biografia proibida de circular, só para lembrar um caso.

Letra e Cultura: Neste domingo (11), mais de 1,5 milhão de pessoas saíram às ruas de Paris para homenagear as vítimas dos ataques terroristas ocorridos nos últimos dias. Foi um ato que chamou a atenção do mundo todo e que, certamente, entrará para a história. Como você se sente tendo presenciado e, de certa forma, participado de tudo isso?  
Samantha Lodi: Presenciei algo que deve ficar para a história e fico raciocinando sobre isso o tempo todo. Estudo mulheres revolucionárias e pude ver como um povo de tradição revolucionária logo vai para as ruas, mas temo pelas consequências que virão.

Letra e Cultura: Na Revolução Francesa de 1789, considerada por muitos o acontecimento sociopolítico mais significante da História Contemporânea, houve um levante de massas que reivindicava o fim da monarquia e clamava por liberdade, igualdade e fraternidade – lema da Revolução, hoje, universalizado como preceitos vitais e irrevogáveis da humanidade. Esse evento causou transformações profundas na sociedade francesa e também refletiu em todo o mundo ao longo dos últimos 226 anos. Que tipo de transformação o ataque à revista Charlie provocará no mundo?  
Samantha Lodi: Observei que os lemas da Revolução Francesa, que é ainda hoje o grande lema da República Francesa, estão vivos e pulsantes, mas é bom lembrar que para colocá-los em prática outros momentos na história da França foram necessários e muita luta aconteceu durante o século XIX. Fazer projeções sobre o que o ataque provocará é complicado, mas penso que as manifestações a favor da liberdade de expressão continuarão e isso é positivo em um mundo que ainda tem tantos governos controladores ou ainda governos que fingem ser adeptos da democracia enquanto são grandes manipuladores, a liberdade de expressão é ainda uma reflexão necessária e por vezes esquecida. O ponto negativo é que isso pode aumentar preconceitos a grupos específicos que podem ser confundidos com os fundamentalistas que organizam o terrorismo, digo confundidos porque a maior parte dos muçulmanos lamenta muito o ocorrido. Outro ponto negativo é que os grupos preconceituosos normalmente vão usar disso para atacar grupos e difundir ideias que podem levar à eleição de uma extrema-direita que resolve tudo com truculência. Assim foi a ascensão do fascismo e do nazismo na Europa das primeiras décadas do século XX. Em nome de uma “segurança” e de uma “ordem”, esses grupos podem se estabelecer no poder. 

Franceses se amontoam na Praça da República
(Foto: Gina Sanches)
Letra e Cultura: Você escreveu dois artigos testemunhais – um deles publicado no Portal Mogi Guaçu – com suas percepções acerca do incidente na Charlie Hebdo. Em ambos você descreve um país acometido por uma tristeza profunda, que, mais do que justiça, clama por tolerância. Você compartilha desse sentimento?
Samantha Lodi: Sempre. A tolerância, para mim, é mais do que seu significado da origem da palavra (para não usar termos complicados), inclui também seu significado cultural, por isso acredito que ter tolerância não é simplesmente dizer “eu tolero”, como se fosse uma obrigação a contragosto. Ter tolerância é buscar compreender o outro na sua forma de agir, pensar e escolher, porque somos diferentes e todos nós merecemos respeito. Grandes seres humanos que passaram pela Terra foram grandes porque foram tolerantes.
  
Letra e Cultura: Segundo noticiado por aqui, cerca de 80 mil agentes, soldados e policiais foram mobilizados para capturar os três responsáveis pelos atos terroristas em Paris. Essa grande movimentação deve ter acentuado o clima de medo e terror na capital francesa, mesmo após a identificação e morte dos envolvidos. Os franceses temem novas investidas de extremistas islâmicos?      
Samantha durante manifestação histórica na
Praça da República (Foto: Gina Sanches)
Samantha Lodi: A mobilização foi grande para proteger a população civil, a área foi isolada e todos continuaram suas vidas normalmente, trabalho, estudo, brincadeiras de crianças no parque, nada parou fora da área isolada. Hoje, os locais públicos e de grande circulação estão com segurança reforçada, podemos notar a diferença, mas não há clima de terror. Na Biblioteca Nacional da França mesmo, onde sempre há uma fiscalização na entrada, havia um cuidado maior do que na semana passada, há uma precaução, mas penso que isso é prudente.

Letra e Cultura: Gostaria de agradecê-la por conceder esta entrevista ao blog LETRA E CULTURA e desejá-la sucesso e paz durante sua estada na França.
Samantha Lodi: Eu que agradeço a oportunidade de poder falar ao blog  LETRA E CULTURA! Espero que a paz permaneça com todos nós.

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