Escolha um idioma para ler este blog | Choose a language to read this blog

sábado, 6 de maio de 2017

Viagem insólita

Por Tarso Zagato


Desesperado, Jerry entra a solavancos em uma tapera lúgubre e abandonada, esquecida em meio à floresta Great Valley. Em sua face amedrontada o suor se mistura às lágrimas, enquanto a confusão mental e a iminência da morte arrancam-lhe a racionalidade.

– Que merda é esta! Que merda é esta! – repete entre suspiros e soluços, imaginando estar sendo espreitado metro a metro pelo seu agressor oculto.

Jerry recosta em uma porta feita de palha e bambu seco, deixando-se deslizar pela superfície suja e embolorada, reclinando-se ao chão e fechando-se entre os joelhos doloridos do exaustivo subterfúgio. Um choro contido permanece quase inaudível e realça a agonia do pobre diabo. Ele respira pouco, cadenciadamente, repreende com força a ação natural do próprio diafragma, temendo ser ouvido e delatado. A respiração não obedece, segue descompassada e denuncia quilômetros de fuga alucinante em meio à floresta úmida e funesta. A mente assustada trabalha inquieta. Um simples ruído, o estalar da madeira retraída pelo frio, o rastejar de insetos repugnantes pelo chão infestado de fezes e musgo, o som do assoalho pressionado pelos pés cansados e feridos, o silêncio que amofina. O mínimo barulho sugestionado pelo medo soa como mil trombetas ao pé do ouvido.

– Isto não pode estar acontecendo. Não pode estar acontecendo – repete palavras novamente, inundado em terror e descrença.

Há muito o sol abandonara o dia e, se ainda pensasse com clareza, acreditaria estar próximo da meia-noite. Naquele instante foi visitado pela imagem iluminada da pequena Sarah, seu incalculável tesouro que se esquecera de beijar na manhã do seu último dia, seu precioso diamante de traços angelicais, o singular motivo de manter-se vivo. Odiou-se por não dar o devido valor às pequenas coisas que realmente importam. O chocolate quente ao pé da lareira, os beijos amorosos de sua linda Jane, o abraço reconfortante e apertado de sua razão de viver, os inegáveis pedidos para mais uma cantiga de ninar, o amor incondicional daquelas que o viam como o mais poderoso dos heróis, a alegria pura e fantástica do lar que tanto se esforçou para manter-se longe.      

Arrancado de seu idílio mental pelo devastador e agonizante desespero, apreensão. Jerry ouve passos pesados, imediatamente delatados pelo ranger de galhos podres e sem vida. Ele sente um frio na espinha consumi-lo por inteiro, é uma lâmina que parece percorrer cada centímetro do seu corpo, extremidade a extremidade. E os passos continuam lá fora, cada vez mais próximos da alcova pútrida, ainda mais assustadores. O barulho cessa, mas o cheiro da morte exala forte. São elementos que precedem o fim e mantém o pobre espreitado imóvel, estático, incapaz, impossibilitado de agir.

A miscelânea de sons reais e imaginários dá lugar a um único: uma respiração pesada, tensa e sistematicamente pausada. Jerry sugestiona outra vez e acredita estar sentindo o bafo quente e fétido do maníaco transpassando a palhoça imunda e envolvendo todo o ar.

– Ele está aqui! O maldito está aqui! Por que eu? – pensa ele, aturdido pela possibilidade de morrer.

Um novo silêncio inquietante faz Jerry regredir no tempo em busca de explicações sensatas que lhe pudessem acalmar a alma e devolver-lhe a racionalidade. Esforçou-se como nunca antes fizera e, mesmo assim, retornou de sua regressão mental sem nada para lhe abrandar os nervos e, tampouco, sem respostas aceitáveis que explicassem aquela situação.

Àquela altura, a quietude da cabana rivalizava com os longínquos e tímidos uivos provocados pelo vento estéril. Era como se a maldade pedisse passagem, em um prenúncio maléfico de dor e terror. Em frente aos olhos graves e encharcados de Jerry, o cenário se completava com o vagaroso movimento de lesmas corpulentas e repugnantes em uma das paredes da choupana, na qual havia uma janela encerrada por pregos e madeira podre e úmida, desenhada por rastros de um muco viscoso e pútrido.   

E assim seguiram-se horas e horas de aflição. Horas que não traziam a clareza do dia, horas que não levavam para longe o pesadelo, horas que não dissipavam o medo. O cansaço físico e mental estampa-se no corpo sujo e estilhaçado pela tensão e nos vidrados olhos vermelhos acentuados por pupilas terrivelmente dilatadas.

Neste momento, com a surrealidade batendo literalmente à sua porta, Jerry se enche de derrota e, por alguns segundos, desiste, deixando-se infectar ainda mais pelo ambiente profano, indo ao chão como um boxeador nocauteado. Sabe que ainda está acordado, pois volta a divagar sobre aquele pedaço do inferno em que fora colocado, o cheiro de merda e podridão impregnado em suas narinas, a maldita besta que parecia brincar com ele antes de mortificar-lhe a alma e submetê-lo às mais lancinantes torturas e aflições. Sentia que não havia mais nada a fazer. Repousou a cabeça na superfície maculada e deixou que o ar, enfim, escapasse livre e descompassadamente de seus pulmões, trazendo-lhe certo alívio, curto e passageiro.

Absorto no breve momento de falsa redenção, Jerry é recolocado em seu inferno pessoal ao retomar aos ouvidos a respiração sádica que ouvira horas antes. Apesar de aterrorizado, em nenhum momento pensou em abandonar seu frágil refúgio no meio do nada. Tinha certeza de que a morte o esperava do lado de fora, como nos filmes de terror em que, uma a uma, as personagens iam sendo estripadas das maneiras mais cruéis e inventivas possíveis.

Vindo de pulmões enormes, presumivelmente, o som pesado ganha ainda mais força. E se aproxima. Somam-se a ele passos também pesados. E se aproxima. Coloca-se à frente da porta em que Jerry está recostado, derrotado. E se aproxima. Abaixa-se lentamente, como se pudesse observar o maldito diabo através da palhoça. E se aproxima. Agora, separados por poucos centímetros de matéria podre e úmida, o nefasto já consegue sentir a pulsação frenética de Jerry, que é acometido por dores lancinantes no peito. Prestes a apagar, mas ainda consciente, sente um estampido nos ouvidos que cessa todos os sons mundo, exceto a respiração que precede a morte. Uma, duas, três vezes. E não há nada mais, apenas uma frase que o faz acordar.  

- Você não merece viver.

Como a um Renton de Welsh, Jerry renasce sobre uma maca fria e dura de hospital, cercado de paredes frias e brancas, simetricamente adornadas por faixas beges que lhes conferem ainda mais esterilidade e rijeza. E não é um dia perfeito como entoava a canção de Lou Reed no filme de Boyle! Está mais para uma cena triste de um filme dramático. Jane, com Sarah nos braços, acompanha tudo por uma janela de vidro, do lado de fora, ambas chorosas e abatidas com mais uma recaída do marido-pai. Jerry assiste a tudo, impassível. Evidencia os inúmeros hematomas nos braços e dedos, consequência dos sucessivos abusos e violações contra o próprio corpo.

A equipe médica esgueirava-se pela sala em socorro do corpo drogado que padecia sobre a maca. Entre os equipamentos que o mantinha vivo, um reluzia sua face, pálida, cadavérica, sem vida. Jerry recobrou a razão sobre tudo o que novamente causara. Naquele momento, desejou estar morto.          

Nenhum comentário:

Postar um comentário